quinta-feira, junho 30, 2005

Não te amo como se fosses rosa de sal...



Não te amo como se fosses rosa de sal, topázio
ou seta de cravos que propagam o fogo:
amo-te como se amam certas coisas obscuras,
secretamente, entre a sombra e a alma.

Amo-te como a planta que não floriu e tem
dentro de si, escondida, a luz das flores,
e, graças ao teu amor, vive obscuro em meu corpo
o denso aroma que subiu da terra.

Amo-te sem saber como, nem quando, nem onde,
amo-te directamente sem problemas nem orgulho:
amo-te assim porque não sei amar de outra maneira,

a não ser deste modo em que nem eu sou nem tu és,
tão perto que a tua mão no meu peito é minha,
tão perto que os teus olhos se fecham com meu sono.

Pablo Neruda

domingo, junho 26, 2005

Deixaste um pedacinho de Ti



(mood: feather theme (piano), Forrest Gump Soundtrack)

Deixaste um pedacinho de ti
dentro do meu afecto.
E agora? O que faço contigo?
Se foi esquecimento... devo ligar a avisar?
Ou guardo-o comigo... na esperança que possas voltar?

Posso fingir que não foi nada... Isso.
Não seria um roubo verdadeiro
e assim tinha-te mais um pouco... mesmo que não por inteiro
mas e se desses pela falta...? Virias reclamá-lo, levá-lo de volta?
e depois que seria de mim... sem nada mais teu, nem o pouco de 'nosso'

Não vês que não aguento, que não posso?
Se não te importares guardo-o só mais um bocadinho
só mais alguns noites, alguns dias
dou-lhe mimo, carinho, não o deixo sozinho
aqueço-o no embalo dos meus sonhos
aconchego-o com calor dos meus olhos

Se precisares mesmo dele então procura-me que eu devolvo
mas dá-me só mais umas noites, só mais uns dias
para te sonhar, para te viver de novo

Se tiver mesmo de ser... eu dou
mas de tanto te viver em mim
quando te chegar já foi um pedacinho meu junto...

Será que me guardas também um pouco?
Ou ligas a avisar do que me esqueci?
...
terei de dizer que foi de propósito que o perdi?

Joana Ramos Pereira

domingo, junho 19, 2005

Segredo

Esta noite morri muitas vezes, à espera
de um sonho que viesse de repente
e às escuras dançasse com a minha alma,
enquanto fosses tu a conduzir
o seu ritmo assombrado nas trevas do corpo,
toda a espiral das horas que se erguessem
no poço dos sentidos. Quem és tu,
promessa imaginária que me ensina
a decifrar as intenções do vento,
a música da chuva nas janelas
sob o frio de Fevereiro?
O amor ofereceu-me o teu rosto absoluto,
projectou os teus olhos no meu céu
e segreda-me agora uma palavra:
o teu nome - essa última fala da última
estrela quase a morrer
pouco a pouco embebida no meu próprio sangue
e o meu sangue à procura do teu coração.

Fernando Pinto do Amaral

sexta-feira, junho 17, 2005

Virei algumas vezes no teu sono



Virei algumas vezes no teu sono
Visitante longínquo, inesperado...
Não me deixes lá fora, no caminho
Não tranques a porta para mim.

Sem ruído entrarei,
sentar-me-ei
Olharei o teu rosto no escuro.
Depois saciado desse olhar
Beijar-te-ei de leve e partirei.

Nicola Valptzarov

Nicola Valptzarov foi um poeta búlgaro, membro da Resistência. Preso pelos nazis, foi torturado e finalmente fuzilado a 23 de Julho de 1942. Horas antes de morrer, escreveu este poema, dedicado à sua mulher.

segunda-feira, junho 13, 2005

Nunca te direi Adeus...



POEMA À MÃE

No mais fundo de ti
Eu sei que traí, mãe.

Tudo porque já não sou
O menino adormecido
No fundo dos teus olhos.

Tudo porque ignoras
Que há leitos onde o frio não se demora
E noites rumorosas de águas matinais.

Por isso, às vezes, as palavras que te digo
São duras, mãe,
E o nosso amor é infeliz.

Tudo porque perdi as rosas brancas
Que apertava junto ao coração
No retrato da moldura.

Se soubesses como ainda amo as rosas,
Talvez não enchesses as horas de pesadelos.

Mas tu esqueceste muita coisa;
Esqueceste que as minhas pernas cresceram,
Que todo o meu corpo cresceu,
E até o meu coração
Ficou enorme, mãe!

Olha - queres ouvir-me? -
Às vezes ainda sou o menino
Que adormeceu nos teus olhos;

Ainda aperto contra o coração
Rosas tão brancas
Como as que tens na moldura;

Ainda oiço a tua voz:
Era uma vez uma princesa
No meio do laranjal...

Mas - tu sabes - a noite é enorme,
E todo o meu corpo cresceu.
Eu saí da moldura,
Dei às aves os meus olhos a beber.

Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo as rosas.

Boa noite. Eu vou com as aves.

Eugénio de Andrade

Não me esqueci de nada, meu Poeta. Guardo a tua voz dentro de mim.
Serás sempre uma inspiração, um afago, o coração e a emoção, uma
presença viva nas minhas "Margens do Sonho". Nunca te direi Adeus...

Soneto de amor



Não me peças palavras, nem baladas,
Nem expressões, nem alma...Abre-me o seio,
Deixa cair as pálpebras pesadas,
E entre os seios me apertes sem receio.

Na tua boca sob a minha, ao meio,
Nossas línguas se busquem, desvairadas...
E que os meus flancos nus vibrem no enleio
Das tuas pernas ágeis e delgadas.

E em duas bocas uma língua..., - unidos,
Nós trocaremos beijos e gemidos,
Sentindo o nosso sangue misturar-se.

Depois... - abre os teus olhos, minha amada!
Enterra-os bem nos meus; não digas nada...
Deixa a Vida exprimir-se sem disfarce!

José Régio

Pintura - "Intimate"
de Rita Rodrigues
(ex-aluna, querida amiga)

domingo, junho 12, 2005

Se tanto me dói que as coisas passem



Se tanto me dói que as coisas passem
É porque cada instante em mim foi vivo
Na busca de um bem definitivo
Em que as coisas de Amor se eternizassem

Sophia de Mello Breyner Andresen

sábado, junho 11, 2005

Poema melancólico a não sei que mulher



Dei-te os dias, as horas e os minutos
Destes anos de vida que passaram;
Nos meus versos ficaram
Imagens que são máscaras anónimas
Do teu rosto proibido;
A fome insatisfeita que senti
Era de ti,
Fome do instinto que não foi ouvido.

Agora retrocedo, leio os versos,
Conto as desilusões no rol do coração,
Recordo o pesadelo dos desejos,
Olho o deserto humano desolado,
E pergunto porquê, por que razão
Nas dunas do teu peito o vento passa
Sem tropeçar na graça
Do mais leve sinal da minha mão...

Miguel Torga

sexta-feira, junho 10, 2005

Amor é fogo que arde sem se ver



Amor é fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer;

É um não querer mais que bem querer;
É solitário andar por entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É cuidar que se ganha em se perder;

É querer estar preso por vontade;
É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata lealdade.

Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade,
Se tão contrário a si é o mesmo Amor?

Luís de Camões

quarta-feira, junho 08, 2005

Sempre

Há sempre uma espera
à esquina do poema
como na paz que
certos seres respiram.

Há sempre um poema
em ti, no olhar,
quando me invades
com uma plenitude
do tamanho
de descobrires o mar.

Luís Melo

segunda-feira, junho 06, 2005

Tu



Existe qualquer coisa em ti...
esse 'quê' sem nome
deve ser esse cheiro tão teu, ou
talvez quando encostas esse olhar ao meu
esse corpo tão imenso
o teu riso rasgado tão intenso
que me devolve contra mim...
contra o meu peito submerso
na doce possibilidade de perder o norte assim
de mergulhar nessa húmida doçura
sem medo de te provar intensamente
uma, e mais outra vez entrar suavemente
na tua pele...nessa intensa corrente
-
Existe, sim, qualquer coisa em ti...
Que afina esta melodia inédita
do desejo de te conter no meu peito
de mergulhar o meu beijo no teu
de te amar a preceito
de sentir-te dentro de tudo o que é meu
de me preencheres em uníssono perfeito
e no fim suarmos na pele salgada
o prazer cansado, a textura arrepiada
a boca ainda ofegante do que a tua me deu
-
Existe mesmo qualquer coisa em ti...
que me faz vibrar o ventre em novos acordes
que me remete para um arrepio de amor
e desejar-te uma e mais outra vez,
cobrir-me do teu calor
sentir-me tão dentro de ti....
sem qualquer vergonha ou pudor
Ser o privilégio de despertar os teus olhos
De madrugar a tua manhã
num abraço profundo
Não me importar de ser o teu mundo
-
Existe qualquer coisa em ti...
Que me faz precisar dessa força só tua de ser pessoa
que me faz estremecer por ser melhor
que me faz querer ser boa
-
Existe mesmo muito em ti...
que me trouxe de volta,
de volta para o melhor de mim

Joana Ramos Pereira

domingo, junho 05, 2005

Respiro o teu corpo



Respiro o teu corpo:
sabe a lua-de-água
ao amanhecer,
sabe a cal molhada,
sabe a luz mordida,
sabe a brisa nua,
ao sangue dos rios,
sabe a rosa louca,
ao cair da noite
sabe a pedra amarga,
sabe à minha boca.

Eugénio de Andrade

sábado, junho 04, 2005

Bastava-nos amar



Bastava-nos amar.
E não bastava o mar.
E o corpo? O corpo que se enleia?
O vento como um barco a navegar.
Pelo mar. Por um rio ou uma veia.

Bastava-nos ficar.
E não bastava o mar a querer doer em cada ideia.
Já não bastava olhar. Urgente: amar.
E ficar. E fazermos uma teia.

Respirar. Respirar.
Até que o mar pudesse ser amor em maré cheia.
E bastava. Bastava respirar
a tua pele molhada de sereia.

Bastava, sim, encher o peito de ar.
Fazer amor contigo sobre a areia.

Joaquim Pessoa

quinta-feira, junho 02, 2005

Nocturno



O desenho redondo do teu seio
Tornava-te mais cálida, mais nua
Quando eu pensava nele...Imaginei-o,
À beira-mar, de noite, havendo lua...

Talvez a espuma, vindo, conseguisse
Ornar-te o busto de uma renda leve
E a lua, ao ver-te nua, descobrisse,
Em ti, a branca irmã que nunca teve...

Pelo que no teu colo há de suspenso,
Te supunham as ondas uma delas...
Todo o teu corpo, iluminado, tenso,
Era um convite lúcido às estrelas...

Imaginei-te assim à beira-mar,
Só porque o nosso quarto era tão estreito...
- E, sonolento, deixo-me afogar
No desenho redondo do teu peito...

David Mourão Ferreira