domingo, maio 15, 2005

Desejo



Queria ser essa noite que te envolve;
e cobrir-te com o peso obscuro
dos braços que não se vêem.
Um murmúrio desceria de uma vegetação de palavras,
enrolando-se nos teus cabelos como
secretas folhas de hera,
num horizonte de pálpebras.
Deixarias que te olhasse o fundo dos olhos,
onde brilha a imagem do amor.
E sinto os teus dedos soltarem-se da sombra,
pedindo o silêncio que antecede a madrugada.

Nuno Júdice

Uma voz na pedra



Não sei se respondo ou se pergunto.
Sou uma voz que nasceu na penumbra do vazio.
Estou um pouco ébria e estou crescendo numa pedra.
Não tenho a sabedoria do mel ou a do vinho.
De súbito, ergo-me como uma torre de sombra fulgurante.
A minha tristeza é a da sede e a da chama.
Com esta pequena centelha quero incendiar o silêncio.
O que eu amo não sei. Amo. Amo em total abandono.
Sinto a minha boca dentro das árvores e de uma oculta nascente.
Indecisa e ardente, algo ainda não é flor em mim.
Não estou perdida, estou entre o vento e o olvido.
Quero conhecer a minha nudez e ser o azul da presença.
Não sou a destruição cega nem a esperança impossível.
Sou alguém que espera ser aberto por uma palavra

António Ramos Rosa

quinta-feira, maio 12, 2005

Uma criança pode sempre ensinar...



Uma criança pode sempre ensinar
três coisas a um adulto:
a ficar contente sem motivo,
a estar sempre ocupado com alguma coisa,
e a saber exigir- com toda a força- aquilo que se deseja.

Se ouvirmos a criança que temos na alma,
os nossos olhos tornarão a brilhar.
Se não perdermos o contacto com essa criança,
não perdemos o contacto com a vida.

Paulo Coelho

Canção

Hoje venho dizer-te que nevou
no rosto familiar que te esperava.
Não é nada, meu amor, foi um pássaro,
a casca do tempo que caiu,
uma lágrima, um barco, uma palavra.

Foi apenas mais um dia que passou
entre arcos e arcos de solidão;
a curva dos teus olhos que se fechou,
uma gota de orvalho, uma só gota,
secretamente morta na tua mão.

Eugénio de Andrade