sábado, outubro 13, 2007

Uma vez...


"... em África andava eu no mato, quando vejo uma zebra maluca às cabeçadas às árvores e afligi-me todo porque o animal não era dali e ia espatifar-se fora do seu horizonte. Alto, bicho bonito! Vem ao pé de mim que te levo para a tua savana, nem que nessa caminhada demore o resto da minha vida. Olhou-me com olhos tão meigos que vi logo que me tinha entendido, os animais entendem as palavras e as intenções por detrás delas, caminhou ao meu lado como burro doméstico, era uma fêmea, ao fim de três horas ajoelhou para que eu montasse. E assim andámos dois dias, dorme aqui, avança acolá, cheirávamos a água do rio mas não alcançávamos de lá chegar, ao terceiro dia, mais mortos que vivos, avistámos a margem e bebemos.

Do outro lado era a savana, a zebra havia de atravessar a nado, eu voltaria para trás, mas não sei porquê deu-me um nó na garganta e à zebra também, que me rodeava, roçava a cabeça no meu peito e não partia. Fui à caça de alguma coisa para comer, depenei o meu pássaro, fiz uma fogueira para assá-lo, pensei, agora vai fugir com medo do lume, mas não, deitou-se ao meu lado como se esperasse alguém ou alguma coisa.

Porque já sabia que me escutava falei-lhe de manso, zebra minha amada, a tua vida não é deste lado do rio, tens que ir-te à procura dos teus, ninguém vive bem sozinho e uma zebra muito menos, tens a tua manada, todas às riscas bonitas como tu, pretas e brancas, a explicar aos homens que preto e branco se misturam na maior beleza, eu sei que és minha amiga e que me estás agradecida, mas chegou a hora de dizermos adeus. Correu um pouco pela margem, experimentou a água. Agora é que vai, qual quê, eu estava deitado com as mãos debaixo da nuca, voltou para trás, deitou-se, pousou a cabeça no meu peito e adormeceu.

Era um peso enorme, mas não quis enxotá-la, havia de parecer-lhe ingratidão, lá adormeci e à medida que dormia o peso fez-se mais leve e no meio da noite acordei de repente e tinha uma mulher nos meus braços e uma pele de zebra a cobrir-nos aos dois. Ela era negra, linda, macia e cheirosa, apertou contra o meu o seu corpo nu e ali nos amámos e nunca, nos dias da minha vida, amei nenhuma que se lhe comparasse.

Um ano inteiro vivemos juntos à beira do rio, nunca lhe pedi explicações porque o mistério é o mistério, da pele costurou colete que nunca mais larguei, ensinou-me tudo sobre o amor, a terra, a floresta, a savana e o rio, ensinou-me, na verdade, tudo quanto sei e a paixão que tinha para viver, vivi-a toda naquele ano, naquela terra quente, à beira daquele rio.

Uma madrugada, que recordo como a mais triste de toda a minha vida, não senti a sua cabeça na cova do meu ombro, nem a sua coxa sobre a minha coxa, nem a sua mão pousada no meu peito. Abri os olhos sobressaltado, saí da cabana, chamei. Mas apenas vi do outro lado do rio, uma zebra que se afastava na luz quieta da primeira manhã."

Rosa Lobato Faria, “Os Pássaros de Seda

(Uma sublime história de AMOR! E o AMOR... é tudo!)

3 Comments:

Anonymous Anónimo said...

inspirador, deve ser uma boa leitura, ainda mais com o fim do verão, tenho que ler
1 abraço de carnide

17 outubro, 2007 15:29  
Blogger Richie said...

Rosa Lobato Faria é sempre uma boa leitura. Recomendo tudo!
Um abraço para Carnide também, mesmo não sabendo quem és :o)

18 outubro, 2007 10:12  
Blogger Richie said...

Vítor, meu amigo:
Agora já sei quem és :o)

Em breve vou deixar aqui no blog umas palavras da Rosa Lobato Faria, do livro, "O Sétimo Véu".
Vais gostar :o)

Abraço forte

18 outubro, 2007 15:42  

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